domingo, 17 de janeiro de 2016

Naianny Henriques







Meu nome é Naianny Henriques, tenho 25 anos. Sou de Divinópolis, Minas Gerais. Minha ataxia começou aos 4 anos de idade, mas o diagnóstico só saiu quando eu tinha 11. 

Aos 4, a escola percebeu que eu caía mais que o normal e chamou minha mãe, que também já havia percebido, porém o pediatra disse que o motivo era por eu ser muito gordinha. Minha mãe fez regime em mim, eu emagreci e não adiantou. Mas minha mãe não desistiu, e me levou em vários especialista, e nada. Viajamos para a capital, onde a médica falou com minha mãe que "mãe é que arruma doença pro filho", que eu não tinha nada. Viemos embora.
Um dia, eu estava no posto de saúde esperando o médico pra ela, ele perguntou se ela já tinha me levado a um neurologista.

Não tinha no SUS, então ela me levou no melhor e mais famoso da cidade, que fez todos os exames possíveis e nenhum deu nada, ele então suspeitou o que seria, mas, por se tratar de uma doença tão rara e tão grave, não falou. Ligou para uma médica na capital, que trabalha no Hospital Sarah, e marcamos consulta para mim.

Lá, os exames foram repetidos, outros foram feitos, e não acusava nada. Com isso, a ansiedade só aumentava.
Quando fui fazer o que seria o último, lembro como foi sofrido e angustiante, era de sangue e em jejum. O resultado demorou e eu, uma criança, preocupada com o resultado de um exame.

Lembro como se fosse hoje o dia em que tive o resultado definitivo. Eu tinha 11 anos. A médica disse: - Você acredita em Deus? Porque só ele!
E disse que o exame havia constatado que eu tinha Ataxia de Friendrich, que era igual ganhar na loteria por ser uma doença muito rara.
A médica pediu para que eu fosse brincar que ela queria conversar com meus pais. 

Mas eu sempre fui muito curiosa. Saí, mas com atenção na conversa, e ouvi minha mãe chorando, aquilo apertando meu coração, ouvi a explicação da doença. Saí de lá sem nenhuma expectativa de vida.
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Sempre vivi com medo. Com 14 anos, eu tomei raiva da escola, e matava muita aula. Na escola, meu apelido era MARIA TONTA, pelo jeito de andar. Minha amiga mudou de escola e eu fui atrás.
Lá foi bom só uns 4 meses. 

Na época, eu usava colete na coluna e incomodava muito. Minha mãe tinha uma fábrica de roupas na parte de baixo da casa. Eu almoçava, arrumava pra escola, saía, ia na mercearia do lado e comprava uma grande garrafa de refrigerante e voltava pra casa sem minha mãe ver, ia para o quarto que tinha TV, tirava o colete e ficava até dar o horário de colocar de novo o colete e fingir que estava chegando da escola. E assim eu fiz sempre, até a escola ligar para saber o motivo do meu sumiço. Contei a verdade e apanhei até.
Sabendo disso, umas colegas me contaram que também matavam aulas e iam para o cemitério. Eu comecei a ir também e, por falta de sorte, peguei gosto naquilo, e ia, mesmo sozinha.

Eu gostava do silêncio, eu lia muito lá, e observava o sofrimento de quem estava participando de enterros. Muitas vezes eu quase morria de chorar sem nem saber quem tinha morrido.

Meu maior medo era a temida cadeira de rodas, mas hoje, com toda a certeza, digo que comecei a viver após a cadeira de rodas. Namorei, saí muito, bebi, tenho histórias boas pra contar.
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Sempre soube das consequências da doença, e pensava: ela não está evoluindo, o dia em que ela acordar, virá com tudo. E assim foi.
Graças a Deus, e aos meus esforços, acabei a graduação em Psicologia em 2013 e fui trabalhar na associação de deficientes do centro oeste de Minas, na minha cidade, como voluntária. Fazia pilates . Estava ficando gostosa. Tinha planos de abrir um consultório para atender.
A Pós-Graduação começaria em abril. 

No dia 8 de março, sábado, acordei com falta de ar, pensei que poderia ser devido ao sereno que peguei na noite anterior, mas fui na UPA, fiz exame, e o clínico geral pediu pra eu procurar um cardiologista, porque estava com muita água nos pulmões, e coração inchado. 

Já tínhamos marcado um clínico para a próxima terça-feira. No carro, eu comentei que era a ataxia dando sinal de vida. Eu ri. Eu já esperava.
Na terça, fui ao cardiologista, que pediu um ecocardiograma para ver direito o que era. O médico me passou o número de seu celular, caso acontecesse algo. Ligar? Pensei: Doutor, bonito, não vou ligar.

Estava com minha irmã. Fomos embora, passei na farmácia e comprei o remédio que ele pediu.
Na quarta trabalhei, passei no centro pra resolver tudo. Eu tinha ortopedista na outra terça no Hospital das Clínicas em Ribeirão Preto, onde faço acompanhamento.

Quando cheguei em casa, minha mãe saiu logo em seguida, comecei a passar mal, liguei pra minha mãe, que ligou pra minha irmã, que ligou pro médico, que mandou me levarem pro hospital que ele estava de plantão. Deu alteração no meu exame, ele me internou. 

Na segunda, eu estava aparentemente bem, tive alta para ir viajar. Arrumei os papéis e fui com minha irmã fazer o ecocardiograma.
Quando cheguei em casa, chamei minha mãe pra ir à missa. Ela topou e foi se arrumar. Enquanto eu me arrumava, fui ao banheiro e passei mal lá. Minha mãe ligou pra minha irmã que veio voando, e me levou para o hospital de novo, direto pro CTI. Insuficiência cardíaca grave.

No hospital, tratavam-me como paciente em fase terminal de ataxia. Eu ouvia tudo que eles falavam.
A cada vez que eu passava mal, a impressão que tinha era que queriam que eu morresse logo.
O dia que mais doeu foi quando falaram para minha mãe e meu cunhado que não tinha mais nada a ser feito por mim.
Eu só pensei eu vou morrer, mas não hoje. Quando eu estava no CTI, eu ouvia isso toda hora: “O caso dela é terminal”.
Eu tive todo o lado esquerdo paralisado, parecia ser AVC. Por isso, falavam tudo na minha frente, pensando que eu não ouvia.
Foram 6 dias horríveis, ouvi barbaridades sobre o meu caso. No quarto, foram mais 28 dias com sonda nasal e oxigênio.
Já saí do hospital, mas fiquei acamada.
E também ainda não havia voltado a falar.
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Fui pra cadeira com 18 anos. Resisti muito. Desde os 15 anos tive indicação de cadeira de rodas. Se eu tivesse noção de que mudaria para muito melhor, eu não teria resistido tanto.



A cadeira me deu a independência que nunca tive antes.
Minha cadeira é motorizada, o que me permite ir aonde eu quero. Eu saía e voltava a hora que bem quisesse. A cadeira é polêmica, me aprisiona e me liberta. Amo e odeio a cadeira. É minha independência, mas estou presa a ela.
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Hoje faço fisioterapia 3 vezes por semana. Fono, nem o SUS e nem a UNIMED liberaram. Antes, minha voz era rouca e pausada. No hospital, quando coloquei sonda alimentar, não falei mais. A voz está voltando com a fisioterapia. Devagar, mas está voltando.

No meu entendimento, eu tive depressão dos 12 aos 14 anos. Meus pais são separados desde os meus 15 anos. Só tenho uma irmã, de 32, que é meu tudo. Meu caso é único na família. Hoje meu quadro é ataxia grave.
Eu adoro escrever, só que não sou boa nisso Eu queria fazer um livro, mas desanimei.

Sofri muito, sim, até o momento em que me assumi cadeirante. Passei a ver o mundo diferente. O pior preconceito que já vivi foi de mim mesma. Demorei a me aceitar.

Tenho muita fé em Deus, e dele tiro minha força para conseguir enfrentar, e faço tudo que posso para me ajudar numa qualidade de vida melhor.
Quando eu desistia da fisioterapia, sempre fazia alguma outra coisa para substituir. Fiz natação, musculação, pilates, nunca fiquei parada.
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Eu perdi todos os movimentos, mas já estou ganhando musculatura e força. O lado esquerdo está mais devagar, mas não vejo a hora de pegar a minha cadeira e ir resolver minhas coisas, sair, beijar na boca.
Por mais que eu esperasse por tudo isso, é muito difícil e angustiante. Tomo antidepressivo. Minha família toda me apoia. Minha mãe parou de trabalhar para cuidar de mim, minha irmã e cunhado cuidam financeiramente da gente. Minha tia paga fisioterapia pra mim. Todos ajudam.

Outro fato no hospital que me machucou foi o dia em que meu sobrinho de quase dois anos, na época, foi me visitar e minha irmã disse: “Dá tchau pra titia pra sempre”. Foi tão triste.
Muitas vezes pedia pra rezarem para eu morrer, porque eu não aguentava mais sofrer.
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Sempre falo da muleta humana. Como disse, eu fui muito resistente à cadeira, mesmo precisando muito. Eu, com 16 anos já não conseguia anda sozinha, sem apoio. Eu tenho uma prima da minha idade. Foi Deus que colocou ela na minha vida. Ela veio morar conosco para me ajudar. Minha mãe conversou na escola para sermos da mesma sala, e onde eu ia, ela me levava. Ela me apoiava como muleta mesmo. Foi assim durante dois anos. Depois caíamos, eu e ela. Não conseguia mais me carregar. 

Em 2008, íamos terminar o ensino médio e ela queria trabalhar. Eu tinha que escolher entre me anular no mundo, ou seguir minha vida com a cadeira.
Queria fazer Psicologia, mas não tinha coragem de conversar com minha mãe sobre isso. Eu tinha medo, porque sabia que ela ia ficar triste. Sempre evitei conversar com meus pais, por sempre me verem chorando. E eu também tinha medo de despertar sentimento de dó nas pessoas. Não queria que ninguém sentisse por mim o que eu mesma sentia.

Juntou a família por parte de mãe e compramos a cadeira motorizada, mas eu não tinha coragem de sair. Até que chegou o dia em que começariam as aulas na faculdade. Acordei cedo, me arrumei, sentei na cadeira. Minha mãe queria me levar de carro. Eu disse que ia sozinha. Nem eu mesma acreditava que ia dar conta de entrar lá, mas entrei como se estivesse desfilando. Por dentro, eu estava um caco.

Eu senti muito medo de fracassar, de não aguentar a pressão dos outros me olhando, eu, diferente das outras pessoas. Dois meses depois, eu ainda não tinha saído de casa com a cadeira, a não ser para a faculdade.
Até que na faculdade eu ganhei um folheto com propaganda do pré-carnaval, que ia ter na cidade e falei com minha prima: É lá que eu me assumo. Chamei ela e mais duas amigas, me arrumei, briguei com minha mãe, que não queria que eu fosse com a cadeira, com medo. E fui assim mesmo.

Assim que cheguei, vi um garoto que estudou comigo no ensino fundamental. Ele olhou com tristeza nos olhos: “Meu Deus, Naianny, o que aconteceu com você?” Eu, sem saber o que dizer, disse: “Uai, comigo, nada. E com você?”
Ficou por isso. Depois vi um moço com quem eu tinha ficado antes da cadeira. Gostava dele e corri, dei voltas para ele não me ver. Só que ele já tinha me visto. Depois de fugir muito, ele me alcançou, agachou-se para ficar da minha altura, escorreu uma lágrima, olhou nos meus olhos e perguntou: “Por que você estava se escondendo de mim?” Eu fiquei calada, mas o olho cheio d´água. Ele disse: “Naianny, eu te conheci sentada e não muda nada, você continua uma mulher linda”. E me pediu um beijo. Aquilo tirou todo o peso das minhas costas. Porque até então eu tinha certeza de que nunca mais ia beijar na boca. Depois disso, nunca mais corri de ninguém.

Namorado mesmo, em casa, só tive um, que era de São Paulo, que tem o mesmo diagnóstico meu, porém não tinha muitos sintomas.
Amo tatuagens. Tenho 6. Há onze anos fiz a primeira, na nuca, uma borboleta, que representa a liberdade. Depois fiz 3 estrelinhas no pé. A razão de ter sido no pé não existe, mas o desenho representa minha avó falecida. Depois fiz o desenho de uma fada com o texto "Tudo Passa".

Tudo passa porque na época eu já havia decidido usar a cadeira, só não tinha falado com minha família, e uma psicóloga da AACD de Uberlândia fez uma intervenção invasiva perto da minha mãe, obrigando-me a usar a cadeira. Na hora, eu disse que iria usar sim, mas lá não voltava mais, e vim chorando até aqui. Com fone de ouvido, ouvi a música Tudo Passa e a música me acalentou.
No pulso esquerdo, trago o nome da minha avó paterna: Luzia, a mesma da estrela. E, no outro pulso, está escrito: Força, Foco e Fé, que é meu lema de vida.
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A minha cadeira é motorizada e no começo, dava muito defeito. Quando eu tinha que ficar sem ela, eu chorava igual criança. E quando a bateria acabava comigo na rua, eu passava trabalho, mas me divertia muito. Quando o pneu furava ou ficava no manual, eu me sentia com pernas quebradas, na manual não consigo andar. Percebia o quanto amava a cadeira, o quanto precisava dela.
De certa forma, a cadeira me afastou um pouco das pessoas, porque antes pra tudo eu precisava dos meus amigos. E, como passei a não precisar dos outros para sair, os amigos não ficavam à minha disposição como antes. Mas eu passei a fazer só coisas que gosto.

Eu hoje fico muito nervosa por depender tanto de todos, mas agradeço a Deus por ter tanta gente que me ajuda.
Mas sinto falta de andar de ônibus, estou doida pra voltar pro pilates.
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Eu estou me recuperando bem. Voltei para casa, aos poucos estou recuperando a minha voz.
Sei que a ataxia não parou por aí.
Mas enquanto há respiração há vida, não vou deixar de viver. Eu não quero ser feliz se houver cura. Eu quero ser feliz independente da cura, agora, com as condições que tenho. 

Acho que a cura, eu não alcanço. Mas não faz diferença, eu não lembro de mim antes da doença.
Nunca andei normal como as pessoas.
Vou viajar. Uma semana sem internet e sem TV. Vou pro sítio do irmão do meu cunhado.
Lá é o paraíso.
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Nossa! Hoje nem to me aguentando de nervo. Vontade de sair. Mas as baterias da cadeira de rodas pifaram, e manual não dá pra andar nem dentro de casa. No momento, não podemos gastar. Vontade de sair.



























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